Reino de Deus x Visão Empresarial da Igreja

Introdução

Em um mundo cada vez mais orientado por métricas, eficiência e resultados imediatos, a igreja evangélica contemporânea frequentemente se vê tentada a adotar modelos empresariais para seu funcionamento e crescimento. Esta tendência, embora bem-intencionada, pode distorcer profundamente a natureza e a missão da igreja conforme revelada nas Escrituras. A teologia reformada, com sua rica compreensão do Reino de Deus, oferece um contraponto valioso a essa visão mercadológica do ministério cristão.

O Reino de Deus: Um Fundamento Teológico

O Reino de Deus é um tema central nas Escrituras, desde o Antigo Testamento até o Novo. Jesus iniciou seu ministério proclamando: “Arrependei-vos, porque é chegado o Reino dos céus” (Mateus 4:17, ARA). Esse Reino não é primariamente um território geográfico, mas o governo soberano de Deus sobre toda a criação e, de modo especial, sobre seu povo redimido.

A teologia reformada entende o Reino em sua dimensão já inaugurada, mas ainda não consumada. Como explica o teólogo Michael Horton:

“O Reino de Deus já irrompeu neste mundo através do ministério, morte e ressurreição de Jesus Cristo, mas ainda aguarda sua consumação final na segunda vinda. A igreja vive nesse intervalo escatológico, como testemunha do Reino que já chegou e como antecipação do Reino que virá em plenitude.”

Esta compreensão do Reino coloca a igreja em uma posição única: não é uma empresa prestadora de serviços religiosos, mas uma comunidade pactual chamada a manifestar os valores do Reino em um mundo ainda sob o domínio do pecado.

A Soberania Divina versus o Pragmatismo Humano

Deus no Centro, Não os Resultados

A visão reformada do Reino está fundamentada na soberania absoluta de Deus sobre todas as coisas. Como afirma o salmista: “O SENHOR estabeleceu o seu trono nos céus, e o seu reino domina sobre tudo” (Salmo 103:19, ARA). Esta perspectiva teocêntrica contrasta radicalmente com a mentalidade empresarial que coloca os resultados visíveis e mensuráveis no centro das decisões.

O pastor e teólogo Kevin DeYoung observa:

“Quando a eficiência e os números se tornam nossa principal preocupação, inevitavelmente começamos a confiar mais em nossas estratégias do que no poder do Espírito Santo. O crescimento numérico pode ser impressionante, mas não é necessariamente um indicador da bênção de Deus ou da fidelidade da igreja.”

Fidelidade Acima do “Sucesso”

A compreensão reformada do Reino redefine o que significa ser uma igreja “bem-sucedida”. O sucesso não é medido primariamente por números, orçamentos ou influência, mas pela fidelidade à Palavra de Deus e aos meios que Ele ordenou. Jesus mesmo advertiu: “Pois que aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” (Marcos 8:36, ARA).

Como lembra o teólogo David Wells:

“A igreja não existe para atrair multidões ou criar experiências religiosas empolgantes, mas para glorificar a Deus através da adoração, do discipulado e do serviço. Sua verdadeira eficácia não pode ser medida por métricas empresariais.”

O Ofício Pastoral versus o CEO

Ministro da Palavra, Não Executivo

Na eclesiologia reformada, o pastor é primariamente um ministro da Palavra e dos sacramentos, não um executivo-chefe. Sua autoridade deriva da fidelidade às Escrituras, não de habilidades administrativas ou carisma pessoal. Paulo exorta Timóteo: “Prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende, exorta com toda a longanimidade e doutrina” (2 Timóteo 4:2, ARA).

Tim Keller, pastor e autor reformado, destaca:

“O pastor não é chamado para ser um visionário empresarial, mas um fiel expositor da Palavra de Deus. Sua principal responsabilidade não é inovar ou reinventar a igreja, mas alimentar o rebanho com a verdade atemporal das Escrituras.”

Liderança como Serviço

Enquanto o modelo empresarial frequentemente glorifica o líder carismático e dominante, o modelo bíblico apresenta a liderança como serviço. Jesus estabeleceu este padrão: “Quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós será vosso servo” (Mateus 20:26-27, ARA).

O teólogo e pastor Mark Dever observa:

“Na concepção reformada, os presbíteros não são executivos corporativos administrando uma organização, mas pastores cuidando de almas. Seu sucesso não é medido por indicadores de desempenho organizacional, mas pela maturidade espiritual do rebanho.”

Eclesiologia Pactual versus Consumismo Religioso

Comunidade de Aliança, Não Provedora de Serviços

A visão reformada compreende a igreja como uma comunidade pactual estabelecida pela iniciativa soberana de Deus, não como uma prestadora de serviços religiosos competindo por “clientes”. Pedro descreve a igreja como “raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus” (1 Pedro 2:9, ARA).

O teólogo Michael Horton adverte:

“Quando tratamos a igreja como um negócio e os membros como consumidores, distorcemos fundamentalmente sua natureza. A igreja não existe para satisfazer preferências religiosas, mas para formar discípulos em uma comunidade de aliança.”

Compromisso versus Conveniência

Na eclesiologia pactual reformada, a membresia envolve compromissos mútuos significativos, não apenas a satisfação de necessidades pessoais. Isso inclui submissão à disciplina eclesiástica, conceito praticamente ausente no modelo empresarial centrado no cliente.

Como escreve o pastor e teólogo Sinclair Ferguson:

“No modelo de consumo, o ‘cliente’ abandona a igreja quando não está mais satisfeito. Na comunidade pactual, os membros permanecem comprometidos uns com os outros mesmo nas dificuldades, refletindo a fidelidade de Deus ao seu pacto.”

Adoração Teocentrada versus Entretenimento

Adoração Regulada pela Palavra

A tradição reformada defende o princípio da “adoração regulada” – adoramos a Deus somente conforme Ele ordenou nas Escrituras, não segundo nossas preferências ou o que parece atrair mais pessoas. Jesus afirmou: “Os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque são estes que o Pai procura para seus adoradores” (João 4:23, ARA).

O pastor e autor Bryan Chapell explica:

“A adoração não é primariamente sobre nossa experiência, mas sobre a glória de Deus. A verdadeira adoração não começa perguntando ‘O que as pessoas querem?’ mas ‘O que Deus requer?'”

Reverência Acima da Relevância

Enquanto o modelo empresarial busca constantemente adaptar-se às preferências do público, a visão reformada prioriza a reverência e a fidelidade teológica acima da relevância cultural imediata. Como adverte o escritor de Hebreus: “Portanto, recebendo nós um reino inabalável, retenhamos a graça, pela qual sirvamos a Deus de modo agradável, com reverência e santo temor” (Hebreus 12:28, ARA).

R.C. Sproul, destacado teólogo reformado do século XX, enfatizava:

“A igreja não precisa ser entretenimento para ser relevante. Sua relevância deriva de sua fidelidade à verdade eterna de Deus, que fala a cada geração, independentemente das modas culturais.”

Aplicações Práticas para a Igreja Contemporânea

Estruturas de Governo Equilibradas

A tradição reformada oferece um modelo de governo eclesiástico que resiste à centralização excessiva de poder. O presbiterianismo, com seu sistema de presbíteros governantes e docentes, estabelece um equilíbrio de autoridade que previne tanto a tirania pastoral quanto a democracia congregacional desordenada.

O apóstolo Paulo estabeleceu presbíteros (plural) em cada igreja (Atos 14:23), indicando uma liderança colegial, não centralizada em um único indivíduo carismático.

Orçamentos que Refletem Valores do Reino

Uma igreja moldada pela visão reformada do Reino prioriza seus recursos financeiros de forma distinta. Em vez de investimentos massivos em instalações impressionantes ou marketing agressivo, ela direciona recursos significativos para missões, diaconia e formação teológica.

Como lembra o autor Philip Ryken:

“Os orçamentos revelam teologia. Uma igreja que gasta mais em marketing do que em missões, mais em entretenimento do que em educação teológica, revela uma compreensão distorcida de suas prioridades.”

Avaliação Ministerial Redefinida

A mentalidade empresarial avalia o ministério pelos números: frequência, ofertas, batismos. A visão reformada do Reino, sem desprezar esses indicadores, olha mais profundamente para sinais de maturidade espiritual, conhecimento bíblico e crescimento no amor e serviço.

Como escreve Paul David Tripp:

“O verdadeiro sucesso ministerial não pode ser medido apenas por planilhas e gráficos. O crescimento em graça e conhecimento de Cristo, a santificação progressiva da congregação e a fidelidade à verdade são indicadores mais significativos de um ministério saudável.”

Conclusão: Um Equilíbrio Necessário

A visão reformada do Reino não rejeita totalmente princípios de boa administração ou organização. Como Paulo afirma: “Fazei tudo decentemente e com ordem” (1 Coríntios 14:40, ARA). O que ela recusa é a adoção acrítica de valores e práticas empresariais que contradizem a natureza teológica da igreja como comunidade pactual.

Timothy Keller sabiamente observa:

“A igreja não deve ser nem tão celestial que não tenha utilidade terrena, nem tão terrena que perca sua distinção celestial. Devemos buscar a excelência em tudo que fazemos, mas sempre perguntando: excelência segundo qual padrão – o do mundo empresarial ou o do Reino de Deus?”

A igreja reformada busca ser fiel à sua vocação como “coluna e baluarte da verdade” (1 Timóteo 3:15, ARA), resistindo à tentação de se tornar mais uma organização competindo por “clientes” no mercado religioso. Sua missão não é crescer a qualquer custo, mas manifestar os valores do Reino em sua adoração, comunidade e testemunho.

Como igreja, somos chamados a uma fidelidade que pode parecer “ineficiente” aos olhos do mundo, mas que está alinhada com os propósitos eternos de Deus. Conforme nos lembra a Confissão de Westminster, a principal finalidade do homem é “glorificar a Deus e alegrar-se nEle para sempre” – não construir impérios religiosos ou organizações bem-sucedidas pelos padrões seculares.


Referências e Leituras Recomendadas:

  • HORTON, Michael. O Evangelho do Reino. São Paulo: Cultura Cristã, 2018.
  • KELLER, Timothy. Centro da Igreja. São Paulo: Vida Nova, 2014.
  • DEVER, Mark. Nove Marcas de uma Igreja Saudável. São Paulo: Fiel, 2007.
  • SPROUL, R.C. O que é a Igreja Reformada? São Paulo: Cultura Cristã, 2016.
  • TRIPP, Paul David. Instrumentos nas Mãos do Redentor. São Paulo: Nutra, 2017.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *