
Introdução: Uma Heresia Antiga com Roupagem Nova
A Primeira Epístola de João, escrita no primeiro século, não é apenas um texto histórico, mas um alerta profético. Seu alvo? O gnosticismo, filosofia que negava a encarnação de Cristo, desprezava a matéria e promovia um suposto conhecimento secreto para salvação. Hoje, embora o termo “gnóstico” pareça anacrônico, suas distorções permeiam igrejas evangélicas, mascaradas de espiritualidade. Como João combateu essas ideias, e por que sua resposta ainda é urgente?
1. A Criação Importa: Refutando o Desprezo Gnóstico pela Matéria
João inicia sua carta com uma declaração visceral: “O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos […] e as nossas mãos apalparam” (1 João 1:1). Ao enfatizar a natureza física de Cristo, ele desmonta o dualismo gnóstico que separava espírito (bom) e matéria (má).
O perigo moderno: Algumas igrejas oscilam entre o ascetismo radical — que demoniza cultura, arte ou prazeres legítimos — e o materialismo que idolatra riquezas como “bênção divina”. Ambos extremos traem a visão bíblica. Como lembra Salmos 24:1: “Do Senhor é a terra e a sua plenitude”.
Abraham Kuyper, teólogo holandês, reforça: “Nada na vida é neutro; tudo é chamado a servir ao reino de Deus, inclusive a cultura” (Graça Comum, 1902). A criação é boa, mas corrompida pelo pecado; nossa tarefa é redimi-la, não rejeitá-la.
2. O Pecado Não é Ilusão: A Ética Gnóstica e Seus Disparates
Os gnósticos acreditavam que o pecado era mera ignorância, não uma realidade moral. João responde com rigor: “Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos” (1 João 1:8).
O perigo moderno: Movimentos que espiritualizam o pecado, reduzindo-o a “bloqueios energéticos” ou “maldições hereditárias”, ignoram a necessidade de arrependimento. Herman Bavinck, em Dogmática Reformada (1895), adverte: “Deus redime tanto o corpo quanto a alma”. Paulo ecoa: “O vosso corpo é santuário do Espírito Santo” (1 Coríntios 6:19). Negar a realidade do pecado é negar a cruz.
3. Obediência ou Conhecimento Secreto? A Autoridade das Escrituras
Para os gnósticos, a salvação vinha de revelações exclusivas a “iniciados”. João rebate: “Aquele que diz: Eu conheço-o, e não guarda os seus mandamentos, é mentiroso” (1 João 2:4).
O perigo moderno: Certos líderes alegam “visões” ou “unções especiais” para justificar heresias ou controle. Martyn Lloyd-Jones alerta: “O Espírito Santo nunca trabalha isoladamente da Escritura” (Vida no Espírito, 1973). A Bíblia permanece como “útil para o ensino, para a repreensão” (2 Timóteo 3:16).
4. Cristo, o Único: Contra o Elitismo Espiritual
O gnosticismo criava hierarquias: “espirituais” versus “carnais”. João desmonta essa pretensão: “Vós tendes a unção do Santo e sabeis tudo” (1 João 2:20). Todos têm acesso direto a Cristo, sem intermediários.
O perigo moderno: Certas comunidades exaltam líderes como “portadores de revelação superior”, gerando dependência e abuso. John Stott ressalta: “A cruz elimina qualquer pretensão humana de superioridade” (A Cruz de Cristo, 1986). Paulo é incisivo: “Não há judeu nem grego […] todos sois um em Cristo” (Gálatas 3:28).
Gnosticismo no Evangelicalismo Brasileiro: 4 Sinais de Alerta
- Dualismo disfarçado de piedade: Desprezo por atividades “seculares” (arte, política, ciência) como “inferiores”.
- Experiências acima da Bíblia: Cultos centrados em êxtase emocional, com desdém pela pregação expositiva.
- Prosperidade como espiritualidade: Teologia da ganância, onde riqueza sinaliza “fé autêntica”.
- Revelações exclusivas: Líderes que manipulam com “profetadas” ou “visões” não testadas pelas Escrituras.
Como Resistir: Voltando às Raízes da Fé
- Recuperar a doutrina da criação: Como Calvino afirmou, “Tudo o que há nos céus e na terra foi criado para glorificar Deus” (Institutas, 1559).
- Pregar o pecado e a graça: Sem arrependimento, não há salvação (Atos 3:19).
- Honrar a Bíblia como norma: “Toda experiência deve ser testada pela verdade revelada” (Lloyd-Jones).
- Democratizar o acesso a Cristo: Rejeitar pirâmides espirituais. Como João, apontar sempre para “o Verbo da vida” (1 João 1:1).
Referências:
- BÍBLIA SAGRADA. Almeida Revista e Atualizada.
- BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada. 1895.
- CALVINO, João. Institutas da Religião Cristã. 1559.
- KUYPER, Abraham. Graça Comum. 1902.
- LLOYD-JONES, Martyn. Vida no Espírito. 1973.
- STOTT, John. A Cruz de Cristo. 1986.
Conclusão:
O gnosticismo moderno não surge com rótulos óbvios, mas como “verdades profundas” que desviam do essencial. A resposta de João — firmeza doutrinária, amor à criação e foco em Cristo — segue sendo bússola. Que a Igreja resista às seduções do elitismo e do misticismo vazio, lembrando: só há um Mediador, e Sua Palavra já foi revelada. “Foge também destes” (2 Timóteo 3:5).